Hoje, às 10h, festa de Santo Oscar Romero e vigília da Festa da Anunciação, Margaret Hebblethwaite abordará o tema "Maria de Nazaré nas teologias feministas. Outros olhares', no evento promovido pelo Instituto Humanitas Unisinos -IHU.
Margaret Hebblethwaite é jornalista católica internacional líder e escritora feminista, foi educada em Lady Margaret Hall, Oxford, e na Universidade Gregoriana em Roma, e escreveu muitos livros de teologia para um público geral. Contribuiu para muitos programas de rádio e televisão. Ela é uma colaboradora frequente de assuntos da Igreja Católica para a BBC, incluindo notáveis reportagens de Roma sobre a eleição do Papa Bento XVI e um programa da BBC Radio 4 para a Sexta-feira Santa de 2003 de Santa Maria, chamado Sala da Paixão. De 1991 a 2000, foi editora assistente do semanário católico internacional The Tablet, onde ainda escreve uma coluna mensal, From the South, sobre a vida dos pobres rurais.
Margaret vive em Santa María, Paraguai, desde 2000 como missionária freelance e é fundadora de uma instituição de caridade chamada Santa María Education Fund. Ela organiza várias aulas de inglês e ensina Bíblia no Instituto de Educação Superior, onde alunos de famílias pobres são treinados para serem tecnólogos de alimentos.
A conferência que publicamos a seguir foi traduzida por André Langer, do CEPAT.
Nesta conferência vou abordar 8 pontos sobre Maria, com base no que diferentes teólogas feministas ou teólogos simpatizantes hoje dizem sobre ela.
Durante séculos, as Igrejas estavam divididas entre católicos, que honram Maria, e protestantes, que estavam tão preocupados em como desenvolver a devoção católica sem nenhuma consideração pela Bíblia, que optaram sistematicamente por ignorá-la.
As sementes da mudança foram semeadas no Concílio Vaticano II, quando a Igreja Católica começou a levar a Bíblia a sério e a promover seu uso entre os leigos. O Papa Paulo VI em seu Marialis Cultus de 1974 disse que toda forma de devoção mariana deveria ter “uma marca bíblica”. O que uma marca bíblica significa, ainda está sendo elaborado.
Mas aos poucos os católicos começam a falar menos sobre as doutrinas marianas não bíblicas, como a Imaculada Conceição, a Assunção e a Coroação como Rainha do Céu, e prestam mais atenção ao material dos Evangelhos. Ao mesmo tempo, os protestantes estão começando a perceber que Maria de Nazaré desempenha um papel bastante importante nos Evangelhos de Lucas e João (embora muito menos em Mateus e Marcos). Isso ocorre principalmente porque a ordenação de mulheres está crescendo nas Igrejas Protestantes, e mais mulheres jovens protestantes fazem teologia, e muitas são mães. Existe agora um desejo entre essas mulheres de encontrar modelos de mulheres na Bíblia, tanto no Antigo quanto no Novo Testamento. É por isso que o interesse pela mãe de Jesus está aumentando.
A antiga visão protestante era de que há muito pouco sobre Maria de Nazaré nos Evangelhos, mas isso não se sustenta. Eu contei os versículos sobre as principais mulheres dos Evangelhos e encontrei:
• 34 versículos sobre Isabel
• 51 versículos sobre Marta
• 77 versículos sobre Maria de Magdala
• mas 147 versículos sobre Maria de Nazaré.
Os estudos bíblicos feministas não podem mais ignorar Maria de Nazaré, embora a mudança seja lenta. Recentemente, em 2002, em uma coletânea de ensaios de diferentes teólogas chamada A Feminist Companion to Luke, Maria de Nazaré recebeu apenas um capítulo, enquanto Marta recebeu quatro capítulos. No entanto, uma importante teóloga feminista estadunidense, Mary Rose D'Angelo, escreveu que a Visitação e o Magnificat, ambos acontecimentos da vida de Maria no Evangelho de Lucas, “são considerados praticamente emblemáticos do feminismo cristão”. [Quando a tradução de um texto ainda não existe em espanhol, eu mesma faço as traduções.] Assim que a mudança está acontecendo.
À medida que a atenção se volta para o bíblico, há um interesse crescente em Maria como uma figura histórica e não como um arquétipo ou figura simbólica. No entanto, nem todos concordam com isso, mesmo entre os melhores teólogos.
Ao longo dos anos, muitos pensadores eminentes viram Maria como um símbolo de discipulado (Raymond Brown e seus colegas no livro Maria no Novo Testamento), ou como um símbolo da mulher ideal (Hans Urs von Balthasar, João Paulo II), ou como símbolo da Igreja (Hugo Rahner, Vaticano II), ou como símbolo do rosto materno de Deus (Carl Jung, Edward Schillebeeckx, Leonardo Boff). Mas uma importante contribuição católica foi dada recentemente por uma teóloga filosófica estadunidense, a professora emérita Elizabeth E. Johnson, que é freira. Sua linha é muito mais próxima daquela das novas teólogas protestantes que querem redescobrir a Maria de Nazaré bíblica. Em seu livro de 2006, Nossa verdadeira irmã. Teologia de Maria na comunhão dos santos, Johnson (São Paulo: Loyola, 2007) escreve:
“Na minha opinião, não faz nenhum sentido teológico usar Maria para encobrir noções defeituosas de Deus, Cristo ou do Espírito.
Que Deus tenha seu próprio rosto maternal. Que Miriam, a mulher galileia, se junte à comunidade de discípulos.
Minha opinião agora é que, para ser fiel a essa mulher que realmente viveu há cerca de dois mil anos, e honrá-la de maneira libertadora, qualquer coisa que dissermos deve estar intimamente ligada à sua realidade histórica em todos os pontos. Maria não é um modelo, um tipo, um arquétipo, um protótipo, um ícone, uma figura representativa, uma ideia teológica... uma essência feminina, a imagem do eterno feminino, uma discípula ideal, uma mulher ideal... ou de qualquer outra forma um símbolo religioso… Pelo contrário, como todo ser humano, como toda mulher, ela é acima de tudo ela mesma...”
Então, o primeiro ponto que quero destacar é que Maria foi um ser humano histórico, uma de nós, não principalmente um símbolo.
Nada afeta mais a maneira de entender Maria de Nazaré do que a iconografia. A imagem predominante na Europa tem sido a de uma figura de pele clara e olhos azuis, vestida de branco e azul claro, coberta com um véu e olhando modestamente para o céu. Esta imagem é derivada de Nossa Senhora de Lourdes, na França, mas não se limita à Europa, pois aqui está um exemplo dessa imagem europeia que influencia a arte nas Filipinas. Isso é imperialismo cultural.
Felizmente, durante séculos também existiu uma tradição de virgens negras, das quais as mais famosas são as de Czestochowa, na Polônia, Monserrat, na Espanha, e Aparecida, no Brasil. Não nos esqueçamos da Nossa Senhora de Guadalupe, padroeira da América, que, se não é loira nem negra, é certamente morena.
E não me esqueço da imagem de Santa María de Fe, a estátua do meu povo no Paraguai. Quando estou na missa, muitas vezes noto como a cor da pele morena-oliva e os cabelos pretos e a beleza facial e a dignidade desta estátua, esculpida por um mestre guarani no século XVII, ecoam na pele, nos cabelos, na beleza e na dignidade das moças que se encontram no templo.
E agora se produzem muitas novas imagens de senhoras negras ou marrons em todo o mundo. Recordemos o poema Maria da Nossa Libertação (1983), de seu grande bispo Pedro Casaldáliga, que se dirige a Maria como:
“Favelada do Rio de Janeiro,
Negra segregada no Apartheid,
Harijan da Índia,
Cigana do mundo.”
Da África.
Da Guatemala.
Da Índia, uma Virgem descalça em um sari.
Da Austrália, Nossa Senhora dos Aborígenes.
Da população maori da Nova Zelândia.
De pessoas dos EUA com herança indígena.
Do Japão, um mosaico entregue à igreja da Anunciação em Nazaré, Israel.
Da China, em memória de uma aparição em Donglu em 1900.
Do Caribe francófono.
Do Caribe de fala inglesa.
A segunda característica, pois, que quero declarar sobre Maria de Nazaré, é que ela não era uma europeia de pele branca e olhos azuis, uma loira. Podemos imaginá-la em muitas peles e roupas diferentes, destacando que ela era uma de nós, enfatizando que ela compartilhava nossa humanidade comum. E nós latino-americanos gostamos de imaginá-la morena. Sabemos que isso não é histórico, é um retrato imaginativo e ficcional; mas é um retrato que enfatiza sua humanidade, em vez de apresentá-la como um símbolo.
Para o terceiro ponto, precisamos olhar para o início do Evangelho de Mateus, no qual é apresentada uma genealogia de Jesus, que vai de Abraão até “José, esposo de Maria, de quem nasceu Jesus” (Mt 1, 16).
As genealogias no Antigo Testamento são sempre de linhagem masculina, mas o que é extraordinário nessa lista é que ela inclui quatro mulheres, e o que é mais extraordinário ainda é quais mulheres estão incluídas.
Ali encontra-se Tamar, nora de Judá; depois da morte do seu marido, seus irmãos e seu pai Judá não quiseram cumprir seu dever legal de se casar com ela e dar-lhe um filho. Ela então se vestiu de prostituta, sim! – e deitou-se com Judá, seu sogro, e engravidou dele.
“Sua nora Tamar se prostituiu e engravidou da sua prostituição” (Gn 38, 24).
Ali encontra-se Raab, que era uma prostituta de profissão. Ela ajudou dois espiões israelitas a fugirem de Jericó, em troca eles pouparam sua vida e ela foi morar com os israelitas.
“Então ela os fez descer por uma corda pela janela, pois a sua casa estava construída na muralha, visto que morava ali” (Josué 2, 15).
Depois encontra-se Rute, que era moabita, viúva de um israelita. Ela seduz o israelita Boaz. O termo “pés” no hebraico bíblico pode referir-se aos pés, mas também pode referir-se aos órgãos sexuais, de modo que o significado não é totalmente explícito, mas o texto é sugestivo. Sua sogra Noemi lhe diz:
“Lava-te, perfuma-te, põe teu manto e desce à eira. Mas não te deixes reconhecer por esse homem, até que tenha acabado de comer e beber. Quando ele se deitar, verá o lugar onde dorme: aproxima-te, descobre-lhe os pés e deita-te; ele mesmo te dirá o que terás a fazer”... “Depois, lá pela meia noite, o homem sentiu um calafrio, e se inclinou para a frente: eis que uma mulher estava deitada a seus pés. Boaz disse: ‘Quem és?’ Ela respondeu: ‘Sou Rute, tua serva. Desposa tua serva’”… “Ela se deitou a seus pés até de manhã e se levantou antes que uma pessoa pudesse reconhecer a outra. Ele dizia: ‘Que não se saiba que esta mulher veio à eira’'” (Rute 3, 3-14).
Quarto, encontra-se Betsabeia, a esposa de Urias, o hitita, a quem Davi vê nua quando ela está se banhando. Ele manda buscá-la e a engravida.
“Então Davi enviou emissários que a trouxessem. Ela veio ter com ele, e ele deitou-se com ela... E Betsabeia concebeu e mandou dizer a Davi: ‘Estou grávida’” (2 Sm 11, 4-5).
Não há nenhuma sugestão de que Betsabeia tenha seduzido Davi, mas ela mostra sua personalidade forte anos depois, quando Davi está em seu leito de morte, e o convence a ungir seu próprio filho Salomão como o próximo rei, substituindo o filho mais velho de Davi.
“Quanto a ti, meu senhor o rei, todo Israel tem os olhos fixos em ti para que lhe anuncies quem há de sentar-se no trono depois de meu senhor o rei” (1 Reis 1, 20).
O que Maria tem a ver com essas quatro mulheres, que têm uma história sexual pouco ortodoxa, para dizer o mínimo? É possível argumentar que ela não tem nada a ver com elas, que ela não é a quinta de uma série. Mas isso parece muita coincidência considerando que Maria também tem uma história sexual pouco ortodoxa. Ela está grávida, mas o homem com quem está noiva não é o pai da criança. Maria poderia ter sido apedrejada até a morte por adultério. Segundo o Evangelho de Lucas, ela consentiu com esta gravidez, nas palavras latinas conhecidas como seu Fiat: “Faça-se em mim segundo a tua palavra”.
Mas esse não é o único ponto. Também é importante notar que todas as quatro mulheres são mulheres poderosas, independentes, mulheres de iniciativa, ao ponto de enganar. Isso dá uma visão muito diferente de Maria da apresentação tradicional de uma mulher modesta, submissa e silenciosa, como nas “10 Virtudes de Maria”, compostas pelo francês do final do século XVII São Luís de Montfort, que incluem: profunda humildade, obediência cega, abnegação constante, pureza insuperável, paciência heroica e bondade angelical. Essa Maria submissa é uma interpretação que desagrada muito as feministas de hoje, e a genealogia de Mateus nos leva a rejeitá-la.
O terceiro ponto, pois, é que Maria é uma mulher de poder e iniciativa, que não teve medo de ser considerada uma pecadora sexual. Não estou dizendo, evidentemente, que ela era uma pecadora sexual! Eu digo que dava essa impressão às pessoas; e a José também antes de receber o sonho do anjo.
O quarto ponto é que ela era pobre. Afinal, no relato de Lucas sobre a apresentação no templo, Maria e José deram “um par de rolas ou dois pombinhos” (Lc 2, 24), que era a opção dos mais pobres. A Anunciação tem sido um dos temas favoritos dos artistas ao longo dos séculos, mas muitas pinturas mostram-na em um edifício rico ou elegante. Isso pode dar uma falsa impressão, embora na maioria dos casos o edifício simbolize algo metafórico, em vez de sugerir que ela tinha essa soma de dinheiro.
Um importante documento produzido por 32 mulheres cristãs de 16 países da região da Ásia e do Pacífico, quando se reuniram em uma conferência em Cingapura, chamada Declaração Resumida sobre Mariologia Feminista, diz o seguinte: “Se reconhecemos que Maria é uma mulher dos pobres, também devemos desafiar a imagem mentirosa que a representa enfeitada de joias e vestida com esmero. Uma vez que a boa nova do Magnificat é uma má notícia para os ricos, rejeitamos o sequestro de Maria por uma Igreja rica, para consolação dos ricos”.
Um dos meus hinos favoritos que cantamos em Santa María de Fe, no Paraguai, é María de los Caminantes. Acho que tem em português também [Maria, mãe dos caminhantes]. Caminhar é o modo de viajar dos pobres.
“Maria, mãe dos caminhantes
Ensina-nos a caminhar
Nós somos todos viajantes
Mas é difícil sempre andar.
Fizeste longa caminhada
Para servir a Isabel
Sabendo-te de Deus morada
Após teu sim a Gabriel.”
Após o nascimento de Jesus, a família tornou-se refugiada, razão pela qual a partir desse momento eram definitivamente pobres, possivelmente indigentes, como milhões de refugiados ucranianos que vemos em nossas televisões hoje. Se olharmos atentamente para Lucas, veremos que Maria descreve sua condição como uma de tapeinōsis (em grego). Isso geralmente é traduzido como uma condição humilde e geralmente entende-se que ela era uma pessoa modesta, humilde em sua personalidade:
“olhou para a condição humilde desta sua serva” (Lc 1, 48 Biblia de las Americas).
Mas isso não é correto. A palavra tapeinōsis na verdade significa humilhação. Então isso não significa apenas que ela era pobre, mas que ela era oprimida, afligida, desprezada e oprimida. A palavra é frequentemente usada para uma jovem que foi humilhada sexualmente, então pode significar que outras pessoas viram a gravidez de Maria como fruto de um estupro ou de um adultério; mas não significa necessariamente isso. Também é usado para as esposas que não têm filhos e, portanto, consideradas inadequadas em uma sociedade onde a principal função da mulher era produzir um filho para o seu esposo. Ana, uma mulher sem filhos, é usado neste sentido em 1 Samuel: suas palavras são quase idênticas às de Maria no Magnificat, e por esta razão uma minoria dos manuscritos do Novo Testamento atribui o Magnificat a Isabel e não a Maria.
“Javé dos exércitos, se quiseres dar atenção à humilhação da tua serva e te lembrares de mim, e não te esqueceres da tua serva...” (1 Sm 1, 11).
Mas a humilhação também poderia referir-se à situação incômoda de ser uma mulher jovem sob a ocupação romana; ou, de fato, simplesmente ser mulher em uma sociedade patriarcal. Outra possibilidade é que as palavras também possam ser uma antecipação da degradação de Maria como refugiada: claro, o exílio no Egito está no Evangelho de Mateus e não em Lucas. Mas se foi um evento histórico, e se a infância de Lucas é baseada nas memórias de Maria, então seus sentimentos no exílio podem ter influenciado a maneira como ela mais tarde louvou a Deus.
Embora não possamos ter certeza das razões exatas de Maria para dizer que foi humilhada, o que importa é que ela fez isso. O quarto ponto, então, é que Maria era pobre e também oprimida.
O próximo ponto centra-se no Magnificat como a chave para entender Maria, e aqui os teólogos e as teólogas latino-americanos abriram o caminho, a começar com Gustavo Gutiérrez, que disse que o Magnificat era “sobre o amor preferencial de Deus pelos humildes e abusados”. Entre muitos outros escritores, Maria Clara Bingemer e Ivone Gebara seguem essa linha em Maria, Mãe de Deus e Mãe dos Pobres. E a mensagem foi aceita por teólogas feministas de todo o mundo. A professora alemã do Novo Testamento Luise Schottroff escreve:
“As duas mulheres grávidas tocam o tambor da revolução mundial de Deus. Uso a metáfora de tocar o tambor para enfatizar o quanto isso contradiz a situação que a cultura ocidental incutiu em nossas cabeças sobre a humildade de Maria diante de Deus e a intimidade e o caráter privado da visita de Maria a Isabel. As duas mulheres anunciam profeticamente a revolução mundial de Deus, a opção de Deus pelos pobres, que começa como uma opção por Maria e pelas mulheres; ela é “bendita entre as mulheres” (Lc 1, 42), doravante todas as gerações a considerarão bem-aventurada (1, 48). A exaltação de Maria degradada inicia a libertação do povo, inicia a atualização da opção pela mulher e pelos pobres.”
No mural de Luciara, MT, de seu grande artista libertador Maximino Cerezo Barredo, vemos Maria sem véu – livre – dançando e cercada de imagens da inversão econômica, social e política que ela proclama no Magnificat. Da esquerda para a direita, vemos homens fugindo literalmente nus. Uma mulher, com roupas sobre a cabeça, vira a cadeira em que o rico opressor estava sentado. Outra mulher traz sacolas com dizeres: Saúde, Educação, Justiça, Pão, Terra e Partilha. À direita, uma mulher ensina os jovens a ler e escrever, e quebra-se o poder dos bancos e do FMI.
Dom Pedro Casaldáliga, influenciado, disse ele, pela nova teologia do Concílio e pela “experiência cristã de luta social”, descobriu que sua “fé em Maria estava mudando radicalmente para algo mais livre e verdadeiro. Ela se transformou cada vez mais, em meus pensamentos e no meu coração, na cantora do Magnificat, a profetisa dos pobres libertados”.
O Magnificat é a inspiração para meu outro hino latino-americano favorito sobre Maria, com seu chamado para mudar o mundo:
“Pelas estradas da vida
nunca sozinho estás
Contigo pelo caminho
Santa Maria vai.
Ó vem conosco, vem caminhar, Santa Maria vem. (Bis)
Mesmo que digam os homens
Tu nada podes mudar
Luta por um mundo novo
De unidade e paz.
Mesmo que digam os homens
Tu nada podes mudar
Luta por um mundo novo
De unidade e paz.
Se parecer tua vida
Inútil caminhar
Lembra que abres caminho
Outros te seguirão.”
Maria, em suma, é uma profetisa. E a fonte desse poder profético está em sua Anunciação, quando recebe um dom extraordinário do Espírito Santo.
“O Espírito Santo virá sobre ti, e o poder do Altíssimo vai te cobrir com a sua sombra” (Lc 1, 35).
Nesta pintura de John Giuliani, a vemos atônita pelo poder dessa força, em vez de sentar-se mansamente e em silêncio. Mas também nas obras de alguns artistas do passado, vemos o poder do Espírito que a enche para se levantar e falar.
O quinto ponto, então, é que Maria foi uma profetisa da libertação.
Algo que Jesus aprendeu com sua mãe é a oração de colocar-se totalmente nas mãos de Deus, em total aceitação da vontade de Deus. Maria na Anunciação diz: “faça-se em mim segundo a tua palavra” (Lc 1, 38). Jesus no Getsêmani diz: “Faça-se não a minha vontade, mas a tua” (Lc 22, 42). A Declaração de Cingapura sobre Mariologia Feminista observa que Maria fez esta oração antes de Jesus: “Aquela que responde: faça-se a tua vontade, é a mãe que ensina ao filho a mesma resposta. Estas são também as suas palavras no jardim do Getsêmani”.
Outro ponto de interesse é que na Perda e no Encontro de Jesus no Templo, não é a pessoa muitas vezes considerada cabeça da família, o homem, que fala com a criança, censurando-a e questionando-a, mas a mãe que toma a iniciativa:
“Sua mãe lhe disse: ‘Meu filho, por que agiste assim conosco? Olha que teu pai e eu, aflitos, te procurávamos’” (Lc 2, 48).
Também no Evangelho de João, de maneira bem diferente, há um retrato de Maria como mestra de Jesus no início do seu ministério. Ela é a pessoa em Caná que decide que chegou a hora de Jesus realizar um milagre, e assim começa seu ministério, apesar de sua resistência inicial. A maioria das pinturas de Caná mostra Maria como figura de fundo, mas este mosaico a mostra como uma pessoa igualmente envolvida, e este ícone russo apresenta Maria tocando no ombro de Jesus para lhe dizer que ele deve fazer alguma coisa.
Em Lucas, Jesus começa seu ministério proclamando:
“O Espírito do Senhor está sobre mim,
porque ele me ungiu para anunciar o evangelho aos pobres,
enviou-me para proclamar remissão dos presos
e aos cegos a recuperação da vista,
para restituir a liberdade aos oprimidos
e para proclamar o ano de graça do Senhor” (Lc 4, 18-19).
A Declaração de Cingapura indica que Jesus repete uma mensagem que sua mãe havia proclamado anteriormente no Magnificat, e depois que Jesus a aprendeu dela: “Com a cantora do Magnificat como mãe, não deve nos surpreender que as primeiras palavras de Jesus no relato de Lucas sobre seu ministério público também seja um mandato para uma mudança radical. Como era de se esperar, no entanto, a Igreja esqueceu que Maria é a primeira a anunciar essa mudança. Compreender isso é básico para nossa resposta a tudo acerca de Maria”.
Essas quatro ideias (o Fiat, a advertência no Templo, Caná e a mensagem de libertação) dão “a marca bíblica” à ideia de Maria como mestra de seu filho. Esta é uma ideia pouco desenvolvida, embora exista uma longa tradição iconográfica de Maria como mulher alfabetizada. Quase todas as imagens da Anunciação na arte tradicional ocidental mostram-na lendo um livro, e há várias pinturas que mostram Maria ensinando Jesus a ler. Há inclusive uma pintura encantadora em um antigo manuscrito de Maria lendo um livro na cama imediatamente após dar à luz Jesus.
Gosto de pensar que Maria era a intelectual da família enquanto José era quem trabalhava com as mãos. Podemos considerar que Jesus tinha amplo conhecimento das Escrituras, que deve ter adquirido de alguém, e não terá havido muitas oportunidades para isso na pequena cidade rural de Nazaré. Mas enquanto este ponto sobre a educação literária de Maria permanece hipotético, podemos afirmar com mais confiança o que é verdade para todas as mães com seus filhos, que Maria foi a mestra de Jesus: este é meu sexto ponto.
A partir daí, várias teólogas e vários teólogos chamaram a atenção para dois versículos de Lucas, que mostram Maria como alguém que reflete sobre a experiência, lembrando e conservando as palavras dos anjos ou de Jesus, questionando-as, procurando compreendê-las, fazendo conexões e, finalmente, transmitindo suas memórias de fatos e ditos significativos. Assinalam que isso implica essencialmente uma atividade teológica.
Depois que os pastores lhe contaram sua experiência nos campos, a visita dos anjos e as palavras dos anjos:
“Maria conservava cuidadosamente todos esses acontecimentos e os meditava em seu coração” (Lc 2, 19).
Um comentário muito semelhante é feito no final da história do jovem Jesus no Templo, quando Maria reflete sobre as palavras de Jesus:
“‘Não sabíeis que devo estar na casa de meu Pai?’ Eles, porém, não compreenderam a palavra que ele lhes dissera. Desceu então com eles para Nazaré e era-lhes submisso. Sua mãe, porém, conservava a lembrança de todos esses fatos em seu coração” (Lc 2, 49-51).
Por causa da importante mensagem teológica da libertação do Magnificat, e por causa das reflexões de Maria sobre o significado teológico dos eventos na infância de Jesus, um escritor presbiteriano, Patrick Miller, disse, na revista acadêmica Theology Today, que “um argumento pode ser apresentado para seu lugar como a primeira teóloga da Igreja”.
A professora Beverly Roberts Gaventa, outra presbiteriana, também comentou que se Maria não fosse uma personagem bíblica feminina, os comentaristas não hesitariam em descrevê-la como teóloga, pois ela é apresentada como alguém que interpreta e anuncia o Evangelho, que reflete e dá testemunho de Cristo.
Novamente, o metodista Joel Green considera que os dois textos de Lucas onde Maria conserva estes assuntos em seu coração, “ressaltam a realidade de que inclusive estes acontecimentos não contêm sua própria interpretação, isto é, que Maria deve entreter-se em uma reflexão hermenêutica para compreender seu significado”.
Elizabeth A. Johnson, a teóloga católica, escreveu na mesma linha: “Estas duas cenas têm a ver com a revelação da identidade deste menino. A plenitude desse significado não é imediatamente evidente, então Maria continua revirando as coisas... Refletir, symballein, significa decifrar seu significado, juntar as coisas até que façam sentido”.
Assim, o sétimo ponto é ver Maria como teóloga.
Finalmente chegamos à morte. O momento em Santa Maria, no Paraguai, em que nosso povo mais invoca Maria é na hora da morte, quando todos os vizinhos e amigos e parentes vêm à casa e ficam ao redor do caixão aberto para rezar o terço. Não fazem reflexões profundas sobre os mistérios, simplesmente se apegam às palavras, repetindo-as sem parar, porque a morte é um momento de comoção, e na comoção a única coisa a fazer é apegar-se ao que é mais familiar. Mas, sem dúvida, pensam no que estão dizendo quando dizem: “Rogai por nós, pecadores, agora e na hora de nossa morte. Amém”.
Eles certamente se lembram que Maria estava profundamente chocada com a morte de seu filho, e sabem que ela entende e sente o que eles estão sentindo. Das 54 imagens que temos no nosso museu jesuíta-guarani em Santa Maria, a minha favorita é esta: Maria ao pé da cruz, um exemplo perfeito de oração – sem falar, apenas olhando, contemplando com toda a atenção, seu rosto totalmente vazio de expressão enquanto cada grama de concentração é dedicado a olhar para o que está acima dela. Ela é atraída para fora de si mesma, atraída para Jesus. Ela mostra sua própria dor e, ao mesmo tempo, nos fornece um modelo de total absorção na pura contemplação.
Ao olhar, precisa soltar seu filho. Nesse sentido, a Igreja viu muitas vezes esta doação, este sacrifício da parte de Maria, como uma espécie de oferenda sacerdotal. Mas, nos últimos anos, uma vez que muitas Igrejas começaram a ordenar mulheres como sacerdotes e a hierarquia católica se apavorou com isso, as conversas sobre a oferenda sacerdotal de Maria no Calvário foram suprimidas.
Não há tempo hoje para dar exemplos desta tradição de Maria como sacerdote da tradição católica passada, mas não devo concluir esta seção, sobre Maria junto à cruz, sem mencionar que não é pouca coisa. Vocês podem encontrar mais de 70 exemplos (em inglês, clicar aqui). No século passado, em 1906, foi concedida uma indulgência de 300 dias para quem rezasse uma oração a “Maria, Virgem Sacerdote”. Mas apenas dez anos depois, em 1916, as imagens que mostravam Maria em vestimentas sacerdotais foram proibidas e, em 1927, também foi proibida a referência verbal à devoção de Maria como sacerdote: “O Santo Ofício não quer mais que se trate de uma devoção à Virgem Sacerdote... Você responde bem à intenção do Santo Ofício deixando esta pergunta completamente adormecida, uma pergunta que as mentes menos esclarecidas não conseguiriam entender exatamente”.
E aí está: oito pontos sobre Maria de Nazaré assim como ela é vista na teologia feminista atual, tanto protestante como católica. Recordemos os oito pontos:
1. Maria como ser humano histórico, uma de nós, não um símbolo.
2. Maria morena, não loira europeia.
3. Maria como mulher de iniciativa e coragem, que não teme ser considerada como pecadora sexual.
4. Maria pobre e oprimida.
5. Maria como profetisa da libertação.
6. Maria como mestra de Jesus.
7. Maria como teóloga.
8. Maria como sacerdote.
No dia 24/03 (quinta-feira), às 10h, Margaret Hebblethwaite ministrará a conferência Maria de Nazaré nas teologias feministas. Outros olhares. A atividade integra o ciclo Incertezas e esperanças do tempo presente. 19ª Páscoa IHU, que tem como objetivo debater transdisciplinarmente temas atuais de teologia e espiritualidade em diálogo com transformações socioculturais em andamento no mundo atual tendo em vista discernir suas implicações para a existência cristã e eclesial na contemporaneidade.
Maria de Nazaré nas teologias feministas. Outros olhares